Fonte: Revista Justificando
Por Maria Eugenia Trombini, advogada popular da Terra de Direitos, cientista social e mestranda em Instituições Políticas, Elites e Processos Decisórios pela UFPR.
Para os liberais do século XIX, a favela era o lugar onde o “resíduo” social apodrecia. Embora as definições contemporâneas não sejam carregadas por um componente moral como o da leitura clássica, essa definição antecipa a leitura ainda presente no senso comum: da favela como espaço de anomalia e desordem. A atenção especial dedicada aos cortiços no Rio de Janeiro de 1904 revela o tratamento da favela pelo viés da saúde pública, ingerência essa que deu causa à revolta da vacina. De lá pra cá, a geografia da violência sugere que o poder público passou a enfrentá-la como uma questão de segurança pública, precipuamente. Seja como for, ao longo da trajetória republicana, os assentamentos subnormais e seus integrantes foram encarados como um problema, passível de intervenção repressiva. Muito menos expressivo o investimento em políticas públicas preventivas, associadas à moradia e educação.
Nesse contexto, o desafio que se coloca é integrar as favelas à cidade, aproximando-as do centro e dos serviços públicos. A moradia não é um detalhe na dinâmica social, afinal, a informalidade abarca outras esferas da vida individual e coletiva, qualificando substantivos vários que não só a ocupação. Fala-se em “setor informal” (HART, 1973, p. 61) e na “busca informal da sobrevivência como novo meio de vida principal da maioria das cidades do Terceiro Mundo”. Em Curitiba, Lima ou Accra o modelo de urbanização adotado, guardadas suas particularidades, fez emergir uma classe trabalhadora informal global. Um dos consensos nas definições sobre o cidadão informal é ser privado da proteção de leis. (DAVIS, 2006, p.191)
Deslocar o excedente populacional para a margem reproduz a desigualdade citadina, facilitada pelo difícil acesso à justiça. Tendo sido assinalada a superposição de carências daquele que habita em favelas, passamos para um estudo de caso sobre o acesso à água e esgoto de moradores de um assentamento irregular de Curitiba. Trata-se de caso emblemático no estado, vez que essa foi a primeira comunidade a ter reconhecido seu direito à usucapião coletiva no Paraná.
A comunidade, situada no bairro do Boqueirão, na zona leste de Curitiba, abriga 30 famílias de coletores de material reciclável desde 1999. Em 2004, a massa falida proprietária do terreno entrou com pedido de reintegração de posse em face dos moradores, os quais arguiram o Usucapião Especial Coletivo em sede de contestação. Embora a sentença de primeiro grau tenha garantindo a propriedade do imóvel aos requerentes pela prescrição aquisitiva em 2013, o processo, que tramita por 09 anos, encontra-se pendente de trânsito julgado de decisão de segunda instância.
Na tentativa de urbanizar a área desde logo e considerando que os recursos interpostos não têm efeito suspensivo, os moradores solicitaram à Sanepar a instalação individualizada do serviço de água/esgoto, até então fornecido de forma precária. A concessionária recusou-se a fornecer o serviço, alegando serem necessários documentos de propriedade do imóvel, “por exigência de normas internas”.
Ocorre que o fornecimento do serviço essencial pela concessionária dispensa prova de titularidade da propriedade, já que é devido ao usuário direto, devendo ser prestado ao possuidor. Como a obrigação de prestação de serviços de fornecimento de água se origina de contrato firmado entre o usuário e a empresa concessionária, trata-se de obrigação propter personam, e não propter rem, sendo ilegítima a exigência de comprovação da propriedade do imóvel.
Ademais, o conteúdo do direito à moradia adequada vislumbra não somente a possibilidade dos requerentes terem abrigo, mas também acesso a serviços básicos. Os regramentos internacionais referentes à matéria são claros ao afirmar a necessidade de tais serviços que constituem um direito humano (Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), Decreto N. 591 de 06 de Julho de 1992).
Diante da negativa da Sanepar, um mandado de segurança foi impetrado para afastar a ilegalidade praticada, garantindo o direito líquido e certo dos moradores a fruir do serviço de forma adequada.
Em 23 de março de 2016, o juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública determinou, em sentença, que a Sanepar forneça o serviço de forma individualizada, desvinculando a discussão da propriedade do terreno da prestação de serviço público fundamental.
O magistrado entendeu que a concessionária não pode se negar a fornecer o serviço público, sob pena de, ao fazê-lo, incorrer em transbordamento da atividade discricionária. A decisão em comento é clara nesse ponto: “trata-se de ato ilegal fundamentado em requisitos inexistentes, por exigir a propriedade da terra quando a posse satisfaz o critério para concessão individualizada do serviço.”
Em referência ao regramento constitucional a decisão invoca a dignidade da pessoa humana para fundamentar a concessão da segurança:
A posse do imóvel, cuja individualização decorre da circunstância de existirem construídas moradias, revela-se, suficiente para assegurar a instalação do serviço essencial, não de forma coletiva e provisória, mas, sim, individualizada e definitiva, pois a prestação do serviço essencial independe do domínio do consumidor. Ao consumidor, como destinatário do serviço, ainda que não seja titular do domínio, exercendo a posse, com residência no local onde necessita do serviço, deve ser assegurada a instalação, cuja recusa viola à dignidade humana.
Assegurar ao possuidor a prestação do serviço público, seja ele de água e esgoto ou de luz, melhora a infraestrutura urbana nos assentamentos autoconstruídos. A decisão é consoante com a jurisprudência do STJ. (AgRg no ARESp 93156/SP, AgRg no AREsp 23.067/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 14/10/2011; AgRg no REsp 1.256.305/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 19/09/2011; AgRg no AREsp 10.021/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 23/08/2011; e AgRg no Ag 1.323.564/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 02/02/2011.)
A tutela jurisdicional da sentença citada confere efetividade ao ordenamento jurídico pátrio que garante a moradia como um direito social (Art. 6o, Constituição Federal), e preconiza como objetivo das políticas de desenvolvimento urbano ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (artigo 182, caput, CF).
Tanto a decisão favorável ao usucapião quanto a do mandado de segurança reconhecem a cidade real e determinam que a paisagem urbanística se adeque ao assentamento, não o contrário. Contudo, garantir a permanência das famílias na ocupação autoconstruída não é o bastante se o acesso aos serviços públicos for precário. Necessário enfrentar as outras informalidades que permeiam a rotina de um morador como o da Sociedade Barracão.
Inserir os moradores na formalidade no que diz respeito ao acesso à água e esgoto de forma individualizada não dá conta do problema, mas certamente ataca uma parte dele ao aumentar a percepção desses cidadãos de que a cidade também é para eles. Espera-se que o sistema de justiça interiorize práticas como essa, urbanizando parte dos 3,2 milhões de domicílios localizados em favela no Brasil IBGE, 2010).
Diante do descompasso entre as políticas públicas que efetivam o direito à moradia e as necessidades da população carente, a tarefa de mitigar as desigualdades socio-espaciais compete também ao Poder Judiciário. Que as respostas por ele fornecidas compreendam a distribuição assimétrica do ônus da urbanização e avancem na regularização fundiária como na experiência aqui narrada.