Em tempos de revisão da lei de zoneamento a aplicação dos instrumentos de política urbana torna-se um dos principais pontos de pauta.
O artigo de Laura Bertol e Thiago Hoshino publicado no livro O mito do planejamento urbano democrático: reflexões a partir de Curitiba denuncia a natureza “negocial” de alguns instrumentos previstos no Plano Diretor de Curitiba.
Segundos os autores do texto “Uma revisão subutilizada: lacunas e incertezas na regulamentação dos instrumentos de política urbana no projeto de lei do novo Plano Diretor de Curitiba”, a primeira geração de planos diretores não deu conta de regulamentar suficientemente os instrumentos de política urbana presentes no Estatuto da Cidade, tendência a qual Curitiba não fugiu.
A partir de uma observação sobre instrumentos como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e o Direito de Preempção, os autores denunciam um significativo déficit de gestão democrática em todo o seu processo de planejamento e implementação. Confira o artigo na íntegra:
>> Acesso o livro O mito do planejamento urbano democrático: reflexões a partir de Curitiba
Uma revisão subutilizada: lacunas e incertezas na regulamentação dos instrumentos de política urbana no projeto de lei do novo Plano Diretor de Curitiba
Por Laura Esmanhoto Bertol, professora da especialização em Direito à Cidade e Gestão urbana (uP/Ambiens) e pesquisadora do grupo “Produção Imobiliária e Reconfiguração das Cidades Contemporâneas” (PPGFAu/uSP), e Thiago A. P. Hoshino, professor da especialização em Direito à Cidade e Gestão urbana (uP/Ambiens) e pesquisador do Propolis/PPGD-uFPR e do Núcleo Curitiba do INCT Observatório das Metrópoles.
A primeira geração de planos diretores, em diversos municípios do país, não deu conta de regulamentar suficientemente os instrumentos de política urbana presentes no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), obstando sua integral efetivação. Essa é uma das principais constatações de pesquisas recentes, tendência à qual Curitiba não parece fugir. Prova disso é que, de 2004 até agora, com exclusão dos institutos do “solo criado” e da “transferência de potencial construtivo” (os quais já vinham sendo sistematicamente empregados desde antes de 2001, com base em legislação local própria), foram esparsas as intervenções do poder público, nesse campo.
É verdade que, ao longo dessa década, levou-se a cabo a demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) nas Vilas Formosa e Parolin, em 2007. Também se buscou aplicar a Edificação e Utilização Compulsórias no entorno da Rua Riachuelo, a partir de 2011. Contudo, ambos os episódios antes confirmam do que desmentem a regra: no primeiro deles, a alteração se deu, ao que tudo indica, para adaptar-se às regras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 1), no afã de se captarem de recursos federais; o segundo ocorreu de modo pontual e fragmentado, sem a edição de normas gerais para todo o território do município. O caso da Riachuelo, ainda, padece de uma série de inconsistências, seja quanto à continuidade do procedimento (não se tem notícia, por exemplo, do início da cobrança de IPTU Progressivo sobre os imóveis que permaneceram ociosos), seja quanto aos resultados alcançados (há críticas sobre uma possível gentrificação em curso na área).
Por sua vez, a Operação Urbana Consorciada da Linha Verde, aprovada em dezembro de 2011, foi e continua sendo cercada de controvérsias: dela, no mínimo, pode-se dizer que deixou muito a desejar no que tange à avaliação prévia dos impactos urbanísticos e à elaboração de um Programa de Atendimento Econômico e Social para a População Afetada, requisitos essenciais previstos em lei. Adicionalmente, os movimentos sociais e os próprios moradores da região denunciam um significativo déficit de gestão democrática em todo o seu processo de planejamento e implementação.
Mais grave, dos demais instrumentos, como o Direito de Preempção e o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), nada se ouviu. Seria de se esperar, portanto, que a revisão do Plano Diretor de Curitiba, ainda não encerrada, viesse sanar essas lacunas históricas e assegurar avanços de regulamentação. Uma das formas de se avaliar se, de fato, esse salto de qualidade e de operacionalidade será dado é comparar os contornos do Plano Diretor vigente (Lei 11.266/2004) com o projeto do novo Plano Diretor enviado pelo Executivo à Câmara de Vereadores, no mês de fevereiro de 2015, o que faremos sinteticamente por blocos, de acordo com o estágio (grau) de utilização desses instrumentos pela gestão municipal.
Solo Criado, Transferência de Direito de Construir (TDC) e Operações Urbanas Consorciadas (OUC)
Em tese, pouca coisa muda para os três instrumentos. Conquanto o chamado “incentivo construtivo” fosse ensaiado em Curitiba desde a década de 1980, seus desdobramentos, nos últimos anos, têm demonstrado falhas cujo equacionamento seria prudente no novo Plano Diretor. A concessão de “potencial construtivo” para a garantia do financiamento da reforma do estádio Joaquim Américo Guimarães, durante as obras da Copa do Mundo, ilustra bem esse tipo de distorção. Além de constituir recurso público, como bem sinalizou o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, o solo criado, se liberado indiscriminadamente, inclusive na forma de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) para as Operações Urbanas Consorciadas, concorre com a Outorga Onerosa do Direito de Construir ofertada pelo município para finalidades sociais, como habitação de interesse popular (quando recolhidos os valores para o Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social), preservação ambiental e proteção do patrimônio cultural.
Direito de Preempção e Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV)
Com respeito ao Direito de Preempção e ao EIV, dez anos depois, seguimos estagnados. Eles até hoje não são aplicados em Curitiba e foram ínfimos os movimentos esboçados pelo projeto do novo Plano Diretor nesse sentido, relegando uma vez mais seu conteúdo para futuras “leis específicas”. O Direito de Preempção, aparentemente, continua fora dos horizontes do Poder Executivo, que o manteve praticamente intocado. No caso do Estudo de Impacto de Vizinhança, as inovações se restringem à tentativa, ao menos discursiva, de compatibilizá-lo com o Relatório Ambiental Prévio (RAP) e com o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Um avanço de compreensão técnica decorre da complexificação do filtro para as hipóteses de obrigatoriedade, que passam a combinar critérios de porte, uso e localização. Nenhuma previsão consta, porém, sobre uma maior abertura à participação popular nos processos de licenciamento de empreendimentos de potencial impacto, a despeito de ter este aspecto comparecido com ênfase nas contribuições da sociedade civil durante a revisão, o que já é uma deficiência apresentada pelo próprio RAP. Na mesma linha, as formas de publicidade e acesso à informação também requerem maior detalhamento.
Aproveitamento Compulsório (PEUC), IPTU Progressivo e Setores Especiais de Habitação de Interesse Social (SEHIS)
Algo distinto é o cenário do PEUC, do IPTU Progressivo no Tempo e dos SEHIS (denominação que as Zonas Especiais de Interesse Social recebem em Curitiba). Pela primeira vez, os Setores Especiais de Habitação de Interesse Social (SEHIS) – não abrindo mão, diga-se de passagem, da antiga nomenclatura existente – ganharam classificação mais precisa, destinando-se à regularização fundiária, à produção habitacional e à promoção de empreendimentos de interesse social. Todavia, na contramão do novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo, perdeu-se a oportunidade de eleger essas áreas, desde logo, as quais deverão ser demarcadas na sequência, conforme o art. 62, §2º. Aqui, o projeto ganharia em consistência se sequer mencionasse expressamente que tal “lei específica” será a Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo, pró- ximo item na fila de revisão.
O IPTU Progressivo também recebeu maior destaque, em nítida articulação com a legislação tributária. Questiona-se se o tão evidente interesse do Poder Executivo neste instrumento é efetivamente de natureza extra fiscal, é dizer, se condiz com o objetivo de coibir a retenção imobiliária especulativa, ou se há risco de que o IPTU Progressivo seja desfigurado em um mecanismo de mera taxação, diante da atual crise fiscal.
Para o PEUC, explicitou-se a caracterização dos imóveis não edificados, subutilizados e inutilizados, permitindo seu rastreando em determinadas macrozonas. Os artigos 95 a 104 do projeto de lei ainda não são autoaplicáveis, como seria ideal, mas fornecem subsídios mais concretos para posterior regulamentação e aplicação. Há que destacar a timidez do art. 99, III, ‘a’: afinal, um imóvel que esteja completamente desocupado por três anos ininterruptos, mais do que à utilização compulsória, está sujeito à arrecadação por abandono, nos termos do art. 1.276 do Código Civil de 2002. Em contraste, é digna de menção positiva o fato de se terem conjugado o PEUC e os SEHIS de Vazios, no art. 99, I, ‘b’.
Sem embargo, nos três casos, a ausência, por parte do poder público, de divulgação e discussão de um diagnóstico sistematizado que subsidiasse o processo de revisão como um todo (contendo os padrões urbanísticos atuais – estrutura fundiária, tipologia das edificações de acordo com os usos e a ocupação –, a leitura crítica da aplicação dos instrumentos – com os principais resultados, inclusive financeiros, e dificuldades encontradas – e as simulações de possível enquadramento) prejudica sobremaneira a possibilidade de se aferir a legitimidade e a efetividade dos parâmetros adotados na versão final do projeto, como a limitação dos vazios urbanos a terrenos a partir de 2.000 m².
Redesenvolvimento Urbano, Concessões Urbanísticas e Plano de Desenvolvimento Regional (PDR)
Por fim, o art. 94, VI, VII e §1º estabelece três novos instrumentos de política urbana: os Planos de Desenvolvimento Regional (PDRs), o Redesenvolvimento Urbano e as Concessões Urbanísticas. Os dois primeiros, tratados de modo bastante genérico, não demonstram com clareza a que vieram. É preocupante que ambos autorizem a flexibilização de índices urbanísticos, especialmente no caso dos PDRs, que, ao revés dos demais instrumentos, são aprovados não por lei específica, mas tão somente por ato do Poder Executivo. Essa disposição é, em si mesma um contrassenso, na medida em que um decreto não tem o condão de revogar normas da lei de zoneamento.
O Redesenvolvimento Urbano, inspirado no Land Readjustment (Reparcelamento), tem sido recepcionado em várias localidades, sobretudo para a reorganização da malha fundiária, ajustando a propriedade do solo de maneira mais funcional, em prol do interesse público e sob a coordenação estatal. Apesar disso, tanto o Redesenvolvimento como as Concessões Urbanísticas deverão ser acompanhados com cautela, devido às parcerias público-privadas neles embutidas, as quais vêm sendo alvo de duras críticas da literatura.
Uma revisão subutilizada?
Em suma, o balanço preliminar do projeto do novo Plano Diretor de Curitiba indica uma regulamentação seletiva dos instrumentos de política urbana: instrumentos de natureza “negocial”22, com declarado apoio e interesse do mercado, como o solo criado, a TDC, as OUCs, as concessões urbanísticas e o redesenvolvimento urbano, foram mantidos ou reforçados; instrumentos de combate à especulação imobiliária, como o PEUC e o IPTU Progressivo, mostram progresso parcial, embora sob ameaça de desvirtuamento (para tornarem-se uma mola propulsora da gentrificação ou um tributo convencional); instrumentos de regularização fundiária e produção habitacional de interesse social, como os SEHIS, aguardam espacialização, isto é, devem “aterrissar” no solo, vinculando-se à política urbana de modo orgânico, sem o que volvem-se totalmente inócuos; instrumentos de democratização e transparência ativa das decisões públicas sobre a distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização, como o EIV, vítimas da resistência dos empreendedores, receberam muito menor atenção do que mereciam.
Noutras palavras, as lacunas que ficaram para essa segunda geração do Plano Diretor terão de esperar mais alguns anos para serem preenchidas. Para tornar seu futuro ainda mais incerto, não foi estipulado um prazo de elaboração e aprovação do conjunto de “leis específicas” a que alude o Plano. Seu art. 153, §2º, determina que, dentro de um ano, “o Município instituirá comissão com a finalidade específica de avaliar e propor as adequações da legislação vigente”. Essa previsão não foi respeitada na vigência do Plano Diretor de 2004 (art. 87) e, sem uma regra mais explícita, pode tampouco ser levada a sério no Plano Diretor de 2015. Se esse triste prognóstico se confirmar, o preço a ser pago por toda a coletividade será mais uma década de omissões e atrasos no cumprimento da função social da cidade. E, malgrado todo o esforço despendido em várias frentes, terminaremos, de novo, com uma revisão senão imóvel, no mínimo bastante subutilizada.