Paula Zarth Padilha, 20/09/2019 | Instituto Democracia Popular
A nova lei de zoneamento de Curitiba, aprovada em dois turnos nesta semana e sancionada pelo prefeito Rafael Greca, se arrastou por dois anos de debates interditados: a utilização de entidades da sociedade civil para legitimar uma pretensa participação popular; o desconhecimento técnico do poder legislativo; e a ampla escuta por parte do poder público para o mercado imobiliário e da construção civil.
A redação da lei contempla menções ao “cumprimento da função social da propriedade”, à “gestão democrática da cidade”, e ao objetivo de “promover a inclusão social através da localização de habitação de interesse social em regiões com infraestrutura urbana, além da recuperação de áreas degradadas, integrando-as ao espaço urbano”, pautas defendidas por quem entende que uma cidade deve ser inclusiva para todas e todos. Mas o processo de construção desse documento e seu resultado final expõe, mais uma vez, uma falha de interlocução entre a população e a gestão da cidade.
Debate desequilibrado
Quando o debate sobre a nova lei de zoneamento chegou à Câmara de Vereadores, em 2017, a pauta foi abraçada pelo mandato do então vereador Goura, atualmente deputado estadual. O parlamentar critica a forma de democracia participativa em vigor, que, na opinião dele, promove desequilíbrio entre as demandas da população em áreas de vulnerabilidade e da população que traz pautas sobre mobilidade ativa e acessibilidade, que não são acolhidas com a mesma escuta que os empresários, os detentores do macropoder econômico junto ao prefeito Rafael Greca.
“O G10, que juntou desde FIEP, ACP, Secovi, se reuniu semanalmente com os técnicos do IPPUC para discutir a lei, para estabelecer consenso sobre o que é do interesse do setor econômico da cidade com o planejamento feito pela Prefeitura. E quase a totalidade dessas contribuições desse G10 foram acolhidas. Salta aos olhos essa questão, que eles tiveram acesso privilegiado ao IPPUC”, explica Goura. “O mesmo não se deu com os grupos sociais, com os movimentos sociais. A participação foi restrita, nas audiências públicas. Eu vejo por um lado que é positivo sim que os setores empresariais e imobiliários consigam organizar suas demandas e apresentá-las ao poder público, não acho isso ruim, o que eu acho ruim e fica desproporcional, um desequilíbrio, é a maneira como o poder público acolhe essas sugestões e como ele acolhe as sugestões dos outros grupos, dos movimentos sociais. A lei que foi aprovada não tem grandes avanços na temática da habitação de interesse social, na temática do desestímulo ao uso do carro”, contextualiza o deputado.
Além dessa ausência de isonomia nos debates com os setores empresariais e com a população, outro problema para o debate da lei de zoneamento é a falta de preparo técnico de quem toma essa decisão: os vereadores. É o que explica a arquiteta e urbanista Luza Basso, da assessoria do mandato de Goura. “O que a gente sentiu é que falta uma busca de qualificação dos vereadores na área técnica. Uma pessoa de cargo público vai lidar diretamente com Projetos de Lei que influenciam as pessoas e a vida delas. É necessário ter o olhar técnico junto ao olhar do cidadão. A gente sentiu muito a falta de qualificação dos legisladores”, explica a profissional.
Luza foi a responsável pela elaboração de um documento entregue aos vereadores com exposição de quatro eixos importantes para o zoneamento, a partir do ponto de vista da implementação de parâmetros mais igualitários para a cidade de Curitiba: discussão de novos instrumentos para promover a construção de habitação de interesse social nas regiões urbanizadas na cidade; combater a especulação imobiliária; reduzir o número de automóveis na cidade, numa perspectiva ambiental; e a participação social.
Lei prevê habitação de interesse social em áreas elitizadas
A lei de zoneamento foi aprovada com um pequeno avanço. “A lei (originária apresentada pelo prefeito Greca) previa que algumas regiões seriam passíveis e outras não da habitação de interesse social e a gente alegou que toda a cidade deve ser passível e estimulada em regiões com infraestrutura”, explica Luza.
“Ter conseguido que se construa empreendimentos inclusivos nessas áreas da cidade é um passo à frente. Foram migalhas, mas avançamos no debate para construir essa cidade inclusiva”, avalia Alice Correia, advogada popular, membro da Frente Mobiliza Curitiba e assessora jurídica da Bancada de Oposição da Câmara Municipal.
A Frente Mobiliza Curitiba atua desde 2014 no debate de direito à moradia e do plano diretor da cidade para construção das propostas e nos debates do projeto de lei de zoneamento apresentado pelo ex-prefeito Gustavo Fruet, que desembocou na proposta de lei do atual prefeito Greca.
“Greca reduziu muito a proposta que veio da gestão Fruet sobre zoneamento. Toda a Frente (Mobiliza Curitiba) se articulou para rever a lei atual, pensar a proposta do Greca e fazer o contraponto. Pensar o que essas propostas afetavam e o que contribuíam no direito à cidade e como a gente poderia construir um projeto de cidade inclusiva, menos desigual e que agregasse mais. Foi um trabalho que começou em 2018, quando a gente comparou textos de lei, mapas, quadros do projeto de lei, todo mundo participou e esse estudo gerou um produto, que foi para a Câmara Municipal”, situa Alice. A Frente Mobiliza Curitiba também participou de reuniões do Concitiba com o IPPUC.
Das 42 propostas de emendas construídas pela Frente, 25 foram apresentadas no plenário da Câmara através da bancada de oposição formada pelos vereadores Professora Josete, Noemia Rocha e Professor Silberto, além dos vereadores independentes Marcos Vieira, Maria Letícia e Dalton Borba.
A bancada de oposição se organizou e debateu diversas emendas do projeto, principalmente sobre o controle social, para contemplar a participação de setores que debatem políticas de uso e ocupação do solo, que tem como norte o direito à cidade. “Propusemos emendas para buscar legislações de zoneamento possam ser apresentadas a partir de 180 dias da promulgação da lei. Tivemos três emendas aprovadas e a mais importante foi a dos empreendimentos inclusivos, nos chamados eixos estruturais e de adensamentos, que são as áreas mais nobres da cidade”, explica a vereadora Professora Josete.
Instância de validação do prefeito
É muito simbólica essa apropriação do debate sobre zoneamento por esse grupo de vereadores. O deputado estadual Goura entende que o poder legislativo municipal tem agido como legitimador, uma “instância de validação” das ações do prefeito Greca, e não de fiscalização dos atos do poder público.
“Ele está ali para passar recibo para o prefeito. No tempo que fiquei ali na Câmara isso foi muito explícito, a gente tem pouquíssimos vereadores que fazem o papel de fiscalização do poder executivo. Isso é muito grave porque você perpetua um modelo fisiológico de demandas pontuais em trocas de favores políticos e a gente não avança em políticas de estado, em políticas efetivas que têm que ser construídas com o passar de gestões”, denuncia.
Para Goura, uma falha dos debates da lei de zoneamento é a exclusão dos municípios da região metropolitana. “Uma crítica que eu faço é que a gente vive numa grande cidade, com um núcleo central de 14 municípios com limites fronteiriços, numa região metropolitana de 29 cidades e quanto a gente incluiu eles nessa discussão de zoneamento? Como que a gente faz uma discussão desse instrumento urbanístico apenas no limite de Curitiba desconsiderando que a gente já vive numa grande metrópole, já tem um fluxo de 500 mil pessoas/dia que fazer viagens de Curitiba para a região metropolitana e vice-versa, a gente tem toda uma problemática do lixo, do abastecimento, da água, que é metropolitana? Eu acho que falta uma visão maior, de planejamento mais integrada com a região metropolitana”.
A vereadora Professora Josete explica que a bancada de vereadores da oposição vai acompanhar os desdobramentos da lei de zoneamento, para que as populações não sejam jogadas para as periferias e tenham acesso de moradia a áreas com infraestrutura, como creches, escolas e unidades de saúde. “Nós só começamos o trabalho, agora temos que acompanhar o executivo para efetivá-las”.
Lei de outorga
Além da aprovação da lei de zoneamento, haverá o debate lei de outorga. “A gente quer garantir que todo o repasse de potencial construtivo seja revertido para o fundo municipal de interesse social e regularização fundiária”, explica Alice Correia, da Frente Mobiliza Curitiba.
Fonte: http://democraciapopular.org.br/noticia/lei-de-zoneamento-de-curitiba-e-aprovada-com-avancos-minimos-para-populacao-2-2