Artigo | Regularização fundiária: política pública ou negócio? Como Curitiba propõe a regularização de assentamentos autoconstruídos

Carlos Modesto Dias, vice-presidente da Câmara Regional do Boqueirão, pediu a aprovação da emenda para a regularização simplificada de construções irregulares. (Foto: Chico Camargo/CMC)

Carlos Modesto Dias, vice-presidente da Câmara Regional do Boqueirão, pediu a aprovação da emenda para a regularização simplificada de construções irregulares. (Foto: Chico Camargo/CMC)

Em Curitiba, quase 20% da população do município vive em assentamentos autoconstruídos, sem segurança da posse. Isso significa que quase 400 mil pessoas não são legalmente proprietários de suas casas, construídas fora das diretrizes de urbanização da cidade.

Esse diagnóstico, aliado a negligência da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab-CT), responsável por promover políticas adequadas de regularização fundiária na cidade, refletiu as demandas populares durante a revisão do Plano Diretor do município, processo acompanhado pela Frente Mobiliza Curitiba que propôs algumas medidas em relação a regularização.

Em artigo no livro O mito do planejamento urbano democrático: reflexões a partir de Curitiba, Líbina da Silva Rocha, Mariana Auler e Bruno Meirinho, do Instituto Democracia Popular, destacam que a política de regularização não deve ser pautada por retornos financeiros.

“A regularização fundiária como política pública, e não como negócio, para que seja assegurado o direito à cidade e a plenitude da cidadania dos moradores que moram em assentamentos autoconstruídos”, afirma o texto. Confira o artigo completo:

Regularização fundiária: política pública ou negócio? Como Curitiba propõe a regularização de assentamentos autoconstruídos 

Por Líbina da Silva Rocha, presidenta do Instituto Democracia Popular e da Associação de
Moradores Amiga das Vilas, Mariana Marques Auler, advogada, mestranda em Direito Público na UFPR, integrante do núcleo de estudos urbanos, ambientais e administrativos Propolis/PPGD-UFPR e do Instituto Democracia Popular, e Bruno Cesar Dechamps Meirinho,advogado, mestre em Geografia pela UFPR e integrante do Instituto Democracia Popular. 

Durante o processo de revisão do Plano Diretor, a Frente Mobiliza Curitiba pautou, entre outros assuntos referentes ao tema da habitação social, a questão da urbanização e regularização de assentamentos autoconstruídos – regularização fundiária –, com o objetivo de garantir a segurança da posse e a infraestrutura urbana adequada para esses assentamentos.

O diagnóstico da situação da regularização fundiária em Curitiba é dramático: quase 20% Regularização1da população do município vive em assentamentos autoconstruídos, sem segurança da posse.O município de Curitiba, entretanto, age como se o problema não existisse, afinal, não existem ações planejadas nem política de regularização fundiária.

Segundo os órgãos municipais, a responsabilidade por promover a regularização fundiária em Curitiba reside na Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab-CT), uma sociedade de economia mista municipal.

Dependente de recursos federais e estaduais, a Cohab-CT atua, majoritariamente, na política de reassentamento das famílias e na construção de casas, em projetos vinculados a programas de governos dessas outras unidades da federação.

Mesmo atuando em projetos vinculados a programas federais, a Cohab-CT não possui nenhum projeto do programa “papel passado”, do Ministério das Cidades, por meio do qual poderia captar recursos federais para a regularização fundiária.

Sem recursos municipais, e se recusando a solicitar recursos federais ou estaduais para a regularização fundiária, a conclusão é que, nessa temática, a cidade de Curitiba não tem nenhum plano de ação.

Em raras ocasiões, a Cohab-CT fala em regularização fundiária. Mas, nesses casos, sua atuação se limita a propor a compra e venda dos terrenos ocupados entre os moradores e os proprietários, geralmente com avaliações imobiliárias que supervalorizam os terrenos, inviabilizando a negociação, o que prejudica os moradores.

Em decorrência disso, nas poucas situações em que há proposta de regularização fundiária em Curitiba, o resultado é a cobrança de valores dos moradores, o que inviabiliza a própria permanência das famílias no local em que residem há anos e ajudaram a construir.

Consultando o texto da lei do Plano Diretor de 2004 (Lei 11.266/2004), nota-se que a regularização fundiária é citada ocasionalmente ao longo do texto, tendo sido mencionada no capítulo da estruturação urbana (art. 9º), nos princípios da política habitacional (art. 27). A regularização fundiária é colocada também como um dos objetivos para a aplicação do direito de preempção (art. 55), uma das destinações possíveis dos recursos auferidos com a transferência e a outorga do direito de construir (arts. 60, 61, 65 e 66) e, por fim, uma das medidas possíveis para as operações urbanas consorciadas. Essas menções, na maioria, são copiadas do próprio texto do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001.

No entanto, a mera cópia do texto do Estatuto da Cidade, sem que se proponham melhorias ou a regulamentação dos dispositivos, revela uma atitude burocrática, estritamente pro forma, diante de um problema tão urgente da cidade de Curitiba. Com isso, conclui-se que a lei municipal 11.266/2004 apenas adotou formalidades que permitiram que o Plano Diretor estivesse em consonância com o Estatuto da Cidade, sem, contudo, se preocupar em aperfeiçoar o planejamento da cidade para que a regularização fundiária pudesse avançar. Assim, durante os 11 anos de vigência do plano, a regularização fundiária continuou apenas no papel.

Além disso, o Plano Diretor de 2004 estabelece, no art. 27, inciso XII, da lei 11.266/2004:

Art. 27 São diretrizes gerais da política municipal de habitação de interesse social:(…)

XII – buscar a auto-suficiência interna dos programas habitacionais, propiciando o retorno dos recursos aplicados, respeitadas as condições sócio-econômicas das famílias beneficiadas.

A diretriz, redigida de forma confusa, estabelece que os programas habitacionais deverão ter “retorno” e “autossuficiência interna”, ou seja, a lei do Plano Diretor de 2004 exige que os programas habitacionais tenham lucro!

Com esse quadro em vista, e diante dos grandes desafios para a implantação da regularização fundiária em Curitiba, a Frente Mobiliza Curitiba propôs algumas medidas para a revisão do Plano Diretor:

  • A adequação do município aos marcos nacionais, especialmente à Lei 11.977/2009, que estabelece novas regras para os processos de regularização e institui o instrumental necessário para sua efetivação.

 

  • A regularização fundiária como política pública, e não como negócio, para que seja assegurado o direito à cidade e a plenitude da cidadania dos moradores que moram em assentamentos autoconstruídos. Ou seja, a política de regularização não deve ser pautada pelos retornos financeiros.

Mobilização popular

Paralelamente ao processo de revisão do Plano Diretor realizado pela Prefeitura Municipal, a Câmara de Vereadores realizou uma série de audiências públicas temáticas. Uma dessas audiências teve o tema da regularização fundiária.

A Frente Mobiliza Curitiba trabalhou intensamente na mobilização para a audiência pública sobre regularização fundiária, tendo também participado da sua organização, coordenada pelo vereador JonnyStica (PT).

A audiência, com o maior número de participantes do conjunto de audiências organizadas pela Câmara de Vereadores para o Plano Diretor, reuniu mais de 250 participantes, na maioria moradores das comunidades que reivindicam regularização fundiária.

Com a participação de diversas lideranças de associações de moradores e com a presença de pessoas convidadas – a advogada Rosane Tierno, conselheira fiscal do IBDU, e Glauco Atorre Penna, coordenador técnico da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo –, o evento pautou diversas soluções para o impasse da regularização fundiária em Curitiba.

Na Prefeitura Municipal não foram realizadas audiências públicas temáticas, mas apenas audiências públicas por regionais, nas quais eram discutidos todos os temas. Nessas audiências, foi pautado pelos moradores, de forma recorrente, o tema da regularização fundiária, problema existente em todas as regiões da cidade.

Proposta de revisão

Depois do processo de audiências públicas e reuniões, a Prefeitura Municipal apresentou um projeto de lei que, acreditamos, traz alguns avanços. Dentre eles, destacamos a inclusão da definição conceitual da regularização de interesse social (art. 68), a previsão das SEHIS de regularização fundiária (art. 62), a indicação da necessidade de se rever a legislação municipal sobre a matéria (art. 69).

Igualmente, destacamos a definição de critérios para a realização dos reassentamentos e a priorização da permanência (art. 69, II e III) e a supressão da exigência de lucro nos projetos habitacionais. Ou seja, lançando os olhos ao diploma normativo anterior, pode-se dizer que o plano melhorou, embora as diretrizes bem intencionadas ainda dependam de regulamentação.

A proposta de revisão do Plano Diretor ainda depende de aprovação na Câmara de Vereadores, onde, esperamos, poderá ser melhorado. Depois de vencida a etapa de revisão, resta ainda o desafio da sociedade civil organizada manter-se ativa para reivindicar a efetivação do novo diploma, bem como para reiterar pautas que, nessa revisão, foram rejeitadas.

Nesse sentido, é essencial fortalecer a ideia de que a regularização fundiária é uma política pública, e não um negócio ou um favor prestado pela administração. A visão de que a regularização fundiária deve ser lucrativa, infelizmente,está arraigada não apenas nos agentes políticos locais, mas também no corpo de técnicos do município –uma posição atrasada não enfrentada pela proposta.

Lembremos aqui do fato de que, ainda que agindo irregularmente, os habitantes dos assentamentos autoconstruídos foram fundamentais para o desenvolvimento da cidade. Além disso, tais comunidades foram as sementes de grandes bairros, hoje valorizados e atrativos. Trata-se, portanto, da efetivação de direitos.

Na condição de política pública, a regularização fundiária não deve consistir em projetos pontuais e escassos, como em geral ocorre em Curitiba. Para efetivar-se, a política pública necessita de objetivos e planos de ações incorporados pelo governo local em sua integralidade.

Nesse sentido, as chances de sucesso da regularização fundiária também dependem da articulação de uma governança multissetorial que adote premissas e objetivos comuns.

No quadro atual, em que forças do hábito sustentam a inércia, a tarefa da regularização fundiária que, em Curitiba,está centralizada na Companhia de Habitação Popular– uma sociedade de economia mista limitada por regras de liquidez e desempenho e afeta aos princípios de mercado e que, com frequência, alega a inviabilidade de algumas ações de habitação de interesse social por não serem lucrativas – encontra obstáculos operacionais para a execução de um verdadeiro programa de regularização fundiária, pelo que consideramos que essa tarefa deve ser assumida pela administração direta.

O amadurecimento das ações de regularização fundiária representará o reconhecimento de partes do território da cidade que hoje estão fora do mapa oficial. Mesmo nos casos em que os moradores de assentamentos autoconstruídos têm algum nível de acesso à infraestrutura urbana, ainda lhes falta algo essencial: a segurança da posse, ou seja, alguma espécie de título que possa prevenir que sejam retirados de suas moradias contra a sua vontade e, ainda, que lhes permitam a mobilidade voluntária, necessária para qualquer família.

2 comentários sobre “Artigo | Regularização fundiária: política pública ou negócio? Como Curitiba propõe a regularização de assentamentos autoconstruídos

  1. São grupos que se apoderam do poder, tem dois discurso um antes de se eleger e outro depois de eleito. Temos de pressionar, a cidade é de todos. todos queremos viver pacificamente, com segurança jurídica.
  2. Estes piliticos corruptos nao tem um pingo de vontade de ajudar estes 20% por de familia que estao morando em areas de riscos em terrenos irregular. Parabens ao vereador jonny stica

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